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Análise do mito da democracia racial a partir de Frantz Fanon e Sueli Carneiro

Analysis of the myth of racial democracy from Frantz Fanon and Sueli Carneiro

Resumo

Neste trabalho buscamos compreender alguns elementos que fundamentam o racismo expresso no mito da democracia racial e intencionamos explicar a exclusão do negro no Brasil. Assim, inicialmente, analisaremos, de forma breve, os autores brasileiros Raimundo Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Gilberto Freyre, buscando evidenciar a construção da ideia de democracia racial. Por conseguinte, apresentaremos o pensamento de Frantz Fanon acerca da objetificação da pessoa negra, com o intuito de mostrar que os procedimentos existentes na ideia de democracia racial possuem um viés inferiorizante do negro, que culmina na negação desse sujeito. Por fim, recorreremos ao pensamento de Sueli Carneiro, precisamente no que se refere ao conceito de dispositivo de racialidade/biopoder, como meio de aprofundar a análise empreendida por Fanon. Como resultados desta pesquisa percebemos que Carneiro, ao engendrar tal conceito, apresenta um novo aparato conceitual que evidencia como as relações de poder operam para a negação do sujeito negro.

Palavras-chaves:
Pós-colonialismo; Brasil; Filosofia

Abstract

In this work, we seek to understand some elements that underlie the racism expressed in the myth of racial democracy and we intend to explain the exclusion of black people in Brazil. Thus, initially, we will briefly analyze the Brazilian authors Raimundo Nina Rodrigues, Arthur Ramos and Gilberto Freyre, seeking to understand the construction of the idea of racial democracy. Therefore, we will present Franz Fanon’s thinking about the objectification of the black people, in order to show that the existing procedures in the idea of racial democracy have an inferiorizing bias of the black, which culminates in the denial of this subject. Finally, we will turn to the thought of Sueli Carneiro, precisely with regard to the concept of raciality/biopower device, as a means of deepening the analysis undertaken by Fanon. As a result of this research, we noticed that Carneiro, when engendering such a concept, presents a new conceptual apparatus that shows how power relations operate to negate the black subject.

Keywords:
Postcolonialism; Brazil; Philosophy

Introdução

Apesar da grande luta do movimento negro para o reconhecimento dos problemas socioeconômicos, culturais e políticos presentes na população negra, diversas camadas da população ainda resistem em aceitar a existência do racismo no Brasil. Mesmo com as pesquisas quantitativas divulgadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1 1 O percentual de brancos que ocupam cargos gerenciais é de 68,6%, enquanto de negros 29,9%. Acerca da taxa de analfabetismo, a exclusão se mantém: o percentual de negros é quase três vezes maior que o de brancos (IBGE, 2019, p. 1). e pelo Atlas da violência,2 2 A taxa de homicídios de mulheres não negras no período de 2009 a 2019 caiu 26,9%, enquanto a de mulheres negras subiu 2%, sendo que só no ano de 2019, do total de mulheres assassinadas no Brasil, 66% eram negras (CERQUEIRA et al., 2021, p. 38-40). que expressam a exclusão social do negro, percebe-se um senso comum que corrobora para a manutenção da ideia de que tais números não se relacionam com a tonalidade da pele.

Partindo do pressuposto de que a ideia de democracia racial é um dos grandes oponentes ao reconhecimento do racismo no Brasil, pretendemos neste trabalho entender alguns elementos em que essa ideia se fundamenta. Para isso, utilizaremos como apoio teórico o pensamento do filósofo martinicano Frantz Fanon, expresso em seu livro Pele negra, máscaras brancas. Em seguida, nos debruçaremos sobre o conceito de dispositivo de racialidade/biopoder; presente na tese de doutorado da filósofa brasileira Sueli Carneiro, A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser.

Para realizar essa tarefa, inicialmente, faremos uma breve apresentação dos pensamentos de Raimundo Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Gilberto Freyre, buscando entender como eles dedicaram seus estudos à questão da raça. Assim, mostraremos como eles passaram de uma demonstração explícita do racismo a um ocultamento das diferenças de raça no Brasil com a construção da ideia de democracia racial. Feito isto, pretendemos realizar um percurso teórico buscando entender alguns dos alicerces da democracia racial, utilizando o pensamento de Frantz Fanon e Sueli Carneiro.

A raça no pensamento brasileiro

Raimundo Nina Rodrigues, em um de seus principais textos, Os africanos do BrasilNINA RODRIGUES, Raimundo. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944., tratará do problema do negro no Brasil (1944, p. 17). Esse estudo foi realizado entre 1890 e 1905, ou seja, o livro foi escrito logo após a instauração da Lei Áurea, momento em que os intelectuais brasileiros se defrontaram com uma importante questão, a saber: com a abolição da escravização, como o negro poderia ser concebido como cidadão? Visto que ele fora sempre entendido como inferior, como mudar seu status com a promulgação da Lei Imperial nº 3.353?

Ao se debruçar sobre a questão, Nina Rodrigues mostra a sua dificuldade em conceber os negros como cidadãos, pois, segundo o autor, eles estariam em um estágio de desenvolvimento anterior; desse modo, sua cultura e formas de convivência estariam afastadas do mundo civilizado.

Para a ciência não é esta inferioridade (dos negros) mais do que um fenômeno de ordem perfeitamente natural, produto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas divisões ou seções. “Os negros Africanos, ensina Hovelacque são o que são; nem melhores, nem piores do que os brancos; pertencem apenas a uma outra fase de desenvolvimento intelectual e moral” (RODRIGUES, 1944NINA RODRIGUES, Raimundo. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944., p. 12).

Assim, a forma de inferiorização racial se assenta em uma suposta limitação evolutiva, ou seja, o problema do negro é que ele não é tão evoluído quanto o branco.

Neste texto, Nina Rodrigues utilizará vários argumentos físicos e anatômicos, como as diferenças de medidas das partes do corpo - por exemplo, nariz, cabeça, cérebro - para demonstrar como o grau de desenvolvimento do negro é menor que o do branco. Assim, afirma a inferioridade social do negro como fato evidente, a ponto de dispensar demonstração: “de fato, não é a realidade da inferioridade social dos negros que está em discussão. Ninguém se lembrou ainda de contestá-la. E tanto importaria contestar a própria evidência” (RODRIGUES, 1944NINA RODRIGUES, Raimundo. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944., p. 289). Nesse sentido, a inferioridade do negro não é algo que está em discussão, já que é aceita por todos e não precisa ser debatida.

Essas entre outras sentenças expressavam a concepção de Nina Rodrigues, segundo a qual a raça negra não poderia ser entendida como pertencente ao povo brasileiro e muito menos reproduzida, na medida em que seria prejudicial ao desenvolvimento da nação.

abstraindo, pois, da condição de escravos em que os Negros foram introduzidos no Brasil, e apreciando as suas qualidades de colonos como faríamos com os de qualquer outra procedência; extremando as especulações teóricas sobre o futuro e o destino das raças humanas, do exame concreto das consequências imediatas das suas desigualdades atuais para o desenvolvimento do nosso país, consideramos a supremacia imediata ou mediata da Raça Negra nociva à nossa nacionalidade, prejudicial em todo o caso a sua influência […] à cultura do nosso povo (RODRIGUES, 1944NINA RODRIGUES, Raimundo. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944., p. 15).

A partir disso, o pensamento de Nina Rodrigues balizará as concepções estatais de embranquecimento da população brasileira, alicerce das políticas de incentivo à imigração europeia, com o intento de extinção dos negros no Brasil. Um exemplo disso podemos encontrar nas discussões existentes na Câmara dos Deputados, no período entre 1921 e 1923, a fim de proibir a entrada de negros no Brasil ou o Decreto-Lei nº 7967, de 1945, que regulava a entrada de imigrantes cuja suposição era a conservação das características europeias e a extinção dos traços negros na população brasileira (NASCIMENTO, 2016NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016., p. 86).

Estas ideias de Nina Rodrigues repercutirão significativamente no meio intelectual brasileiro, contando com porta-vozes importantes como o médico Arthur Ramos, que aprovará e divulgará as teses de Nina Rodrigues, tomando-as como um aporte teórico importante ao aplicá-las na psicanálise:

As concepções mythicas do tupy-guarany são sensivelmente inferiores às do negro, mas do negro de procedência sudaneza, porque os bantus tem um esboço de systema mythico que mal chega a caracterizar uma creação mythologica. Assim, independente da psychanalyse, já no seu tempo Nina Rodrigues observava que a concepção religiosa dos índios brasileiros se achava no período inicial do chtonismo (RAMOS, 1934RAMOS, Arthur. O negro brasileiro: etnografia religiosa e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização-Brasileira, 1934., p. 211-212).

Como se pode notar, Ramos estabelece uma comparação entre os mitos de populações originárias do território brasileiro (indígenas) e os de populações negras, realizando, inclusive, uma hierarquização entre negros bantus e sudaneses. Nesta análise, o pensador deixa evidente que entende as religiosidades originária e negra como inferiores à religiosidade branca.

Este escrito mostra ainda que em 1934, momento de publicação do livro O negro brasileiro: etnografia religiosa e psicanálise, as ideias de Nina Rodrigues ainda eram vigentes e apoiadas no meio acadêmico.

No mesmo período de lançamento do livro de Ramos, vem a lume um dos mais importantes textos para a antropologia brasileira: um vasto estudo de Gilberto Freyre intitulado Casa Grande e Senzala é publicado em 1933.

Neste texto, Freyre realiza uma etnografia da cultura brasileira tendo como meio de compreensão as relações sociais permeadas pela casa grande e pela senzala. Nota-se, na obra, a tentativa de extinguir a ideia da existência de uma inferiorização pautada na raça no Brasil. Essa tese é mostrada logo no início do primeiro capítulo do livro no qual Freyre afirma que a formação da sociedade portuguesa é tributária de uma forte influência africana, além da europeia:

a singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África. Nem intransigentemente de uma nem de outra, mas das duas. A influência africana fervendo sob a européia e dando um acre requeime à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro correndo por uma grande população brancarana quando não predominando em regiões ainda hoje de gente escura; o ar da África, um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando mas sem governar; governando antes a África (FREYRE, 2000FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006., p. 66).

Ao afirmar a origem africana dos portugueses e o seu convívio harmonioso com os diversos povos, Freyre mostrará que a relação entre a casa grande e a senzala ocorria sem a inferiorização dos negros devido a sua cor ou origem, e sim uma relação de igualdade. Ou seja, o racismo era inexistente. Contudo, o trecho acima deixa evidente que a influência africana ocasiona uma formação cultural sexualizante do português, provocando uma corrupção da moralidade europeia. Assim, notamos uma relação de distinção entre europeus e africanos na qual os primeiros se relacionam a uma disciplina, à arquitetura, ao direito; enquanto os últimos são entendidos a partir da sexualização dos seus corpos. Aqui é importante notar uma diferenciação apontada por Freyre em que os africanos são entendidos a partir do corpo, enquanto os europeus a partir da razão.3 3 Mais adiante retomaremos a análise dessa citação.

Ao mostrar a relação harmoniosa entre africanos e portugueses, Freyre fundamenta uma relação social sem hierarquias na qual a escravização é entendida apenas como uma relação necessária para a colonização:

No caso brasileiro, porém, parece-nos injusto acusar o português de ter manchado, com instituição que hoje tanto nos repugna, sua obra grandiosa de colonização tropical. O meio e as circunstâncias exigiriam o escravo. A princípio o índio. Quando este, por incapaz e molengo, mostrou não corresponder às necessidades da agricultura colonial - o negro. Sentiu o português com o seu grande senso colonizador, que para completar-lhe o esforço de fundar agricultura nos trópicos - só o negro. O operário africano. Mas o operário africano disciplinado na sua energia intermitente pelos rigores da escravidão (FREYRE, 2000FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006., p. 322).

Assim, o texto de Freyre, ao construir uma concepção cultural brasileira alicerçada no modelo econômico presente na casa grande e senzala, afirma que o fim da escravização trouxe mais malefícios que benefícios tanto aos negros quanto aos senhores de engenho no Brasil:

De modo que da antiga ordem econômica persiste a parte pior do ponto de vista do bem-estar geral e das classes trabalhadoras - desfeito em 88 o patriarcalismo que até então amparou os escravos, alimentou-os com certa largueza, socorreu-os na velhice e na doença, proporcionou-lhes aos filhos oportunidades de acesso social. O escravo foi substituído pelo pária de usina; a senzala pelo mucambo; o senhor de engenho pelo usineiro ou pelo capitalista ausente. Muitas casas-grandes ficaram vazias, os capitalistas latifundiários rodando de automóvel pelas cidades, morando em chalés suíços e palacetes normandos, indo a Paris se divertir com as francesas de aluguel (FREYRE, 2000FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006., p. 51-52).

Ao conceber uma relação harmoniosa entre portugueses e africanos, Freyre propõe uma interpretação social do Brasil que é entendida por seus críticos como uma democracia racial4 4 Sobre a noção de democracia racial, ver FERNANDES, 2008. , de modo a pulverizar qualquer concepção pautada numa relação de desigualdade entre negros e brancos. É importante expor aqui mais um trecho da obra do próprio autor que deixa evidente o tipo de “harmonia” existente no período escravocrata:

[…] como responsabilizar-se a negra da senzala pela depravação precoce do menino nos tempos patriarcais? O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com a sua docilidade de escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço. Desejo, não: ordem (FREYRE, 2000FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006., p. 456).

O que percebemos aqui é que essa “harmonia” entre brancos e negros não parece ser tão harmônica assim, pois Freyre deixa evidente que a escrava, concebida como um símbolo da depravação, é obrigada a “abrir as pernas” para o seu senhor. Nitidamente, a situação relatada por Freyre nada tem a ver com “docilidade”, e embora o autor pareça esforçar-se em relativizá-la, não faz mais do que descrever uma cena de estupro.

Entretanto, Freyre será compreendido e divulgado como o autor que demonstra a harmonia existente nas relações raciais no Brasil, fundamentando, assim, a teoria da democracia racial, a partir da qual os problemas sociais no Brasil serão alicerçados apenas numa questão de classe (CAMPOS, 2016CAMPOS. Luiz A. Relações Raciais entre Negros e Brancos em São Paulo: a história de uma edição. Revista Estudos Políticos, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 620-627, 2016. Disponível em https://bit.ly/3CdJO5P. Acesso em 03 mar. 2022.
https://bit.ly/3CdJO5P...
, p. 621).

Percebemos assim que o pensamento de Freyre possui uma diferença em relação ao pensamento de Nina Rodrigues e Ramos, enquanto estes últimos defendiam uma inferiorização da raça negra com teses que defendiam a pureza e a hierarquia racial - característica essencial do racismo científico -, por sua vez, Freyre nega a diferenciação entre raças, de tal modo que sua teoria se amparará na concepção de que no Brasil houve uma assimilação de culturas, que já existia em Portugal, e se propagou nesta colônia. Isto pode ser visto na mestiçagem de sua população evidenciando, segundo o autor, uma convivência não conflituosa entre negros, brancos e índios. Esta concepção que ampara o mito da democracia racial será amplamente divulgada pelos países europeus contra a independência das colônias, destarte que será concebido por Barbosa a partir da noção de “colonialismo esclarecido”:

nesse colonialismo reconfigurado do pós-Segunda Guerra, boa parte dos intelectuais, embora procurassem exercer uma crítica sistemática às teorias de pureza racial e cultural, não eram hostis à presença europeia nos territórios coloniais. Ao contrário, buscavam utilizar o discurso intelectual da mestiçagem como meio de suavizar as tensões étnicas na esfera colonial (BARBOSA, 2018BARBOSA, Cibele. Casa Grande & Senzala: a questão racial e o “colonialismo esclarecido” na França do Pós-Segunda Guerra Mundial. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 33, n. 96, p. 1-16, 2018. Disponível em: https://bityli.com/YNKRpim. Acesso em 13 set. 2022.
https://bityli.com/YNKRpim...
, p. 6).

Mesmo havendo autoras e autores que logo mostraram que tal concepção não possuía fundamento na realidade, mas que as relações sociais eram atravessadas pelo racismo - como a dissertação de mestrado de Virgínia Leone Bicudo, em 1945 (SCHECHTER; VIDAL, 2020SCHECHTER, Rosa Coutinho; VIDAL, Paulo Eduardo Viana. O apagamento de Virgínia Leone Bicudo e seus trabalhos sociológicos. Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 20, p. 87-107, 2020. Disponível em: https://bit.ly/34bOhcK. Acesso em 04 mar. 2022.
https://bit.ly/34bOhcK...
, p. 93) -, a concepção de democracia racial foi a mais difundida no Brasil. Essas ideias foram e são tão predominantes que o Brasil era conhecido no exterior como o país onde não havia conflitos raciais, a tal ponto que a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) encomendou um estudo sobre as relações raciais no Brasil para entender como esse país se organizou para não ter os problemas raciais que eram tão prementes na África do Sul e nos Estados Unidos (CAMPOS, 2016CAMPOS. Luiz A. Relações Raciais entre Negros e Brancos em São Paulo: a história de uma edição. Revista Estudos Políticos, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 620-627, 2016. Disponível em https://bit.ly/3CdJO5P. Acesso em 03 mar. 2022.
https://bit.ly/3CdJO5P...
, p. 621).

O relatório do projeto da Unesco reuniu textos de intelectuais como Virgínia Leonel Bicudo, Oracy Nogueira, Florestan Fernandes, entre outros, que evidenciaram que a relação racial no Brasil não era tão harmônica assim (BASTIDE; FERNANDES, 1955BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan . (ed.) Relações Raciais entre Negros e Brancos em São Paulo. São Paulo: UNESCO, 1955.), expondo que a democracia racial nada mais é do que um mito. Contudo, a concepção de que há uma harmonia entre brancos e negros no Brasil se mantém vigente, sendo um dos principais pressupostos teóricos para a não realização de políticas afirmativas aos negros. Esta crença é tão presente que será apresentada por Abdias Nascimento como o principal oponente do movimento negro - ainda em 1978, quando a obra O genocídio negro no Brasil foi publicada. Ao afirmar que a falta de escritores afro-brasileiros estaria apoiada em um modelo racista peculiar ao Brasil, Nascimento qualifica-o da seguinte maneira:

um racismo de tipo muito especial, exclusiva criação luso-brasileira: sutil, difuso, evasivo, camuflado, assimétrico, mascarado, porém tão implacável e persistente que está liquidando definitivamente os homens e mulheres da raça negra que conseguiram sobreviver ao massacre praticado no Brasil. Com efeito essa destruição coletiva tem conseguido se ocultar da observação mundial pelo disfarce de uma ideologia de utopia racial denominada “Democracia racial”, cuja técnica e estratégia têm conseguido, em parte, confundir o povo afro-brasileiro, dopando-o, entorpecendo-o interiormente; tal ideologia resulta para o negro num estado de frustração pois que lhe barra qualquer possibilidade de auto-afirmação com integridade, identidade e orgulho (NASCIMENTO, 2019NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo; Rio de Janeiro: Perspectiva; IPEAFRO, 2019., p. 34-35).

Assim, a concepção de democracia racial pode ser apontada como o principal fundamento em que se baliza o preconceito de cor existente no Brasil, a tal ponto que ele é cada vez mais mascarado, como aponta Munanga (2010MUNANGA, Kabengele. Teoria social e relações raciais no Brasil contemporâneo. Cadernos Penesb, Niterói, n. 12, p. 169-204, 2010. Disponível em: http://bit.ly/3Qyckbv. Acesso em 19 out. 2023.
http://bit.ly/3Qyckbv...
, p. 201), em piadas, de modo que a segregação é apaziguada ao ser afirmada como uma brincadeira, pretensamente inofensiva, ao passo que, efetivamente, tais disfarces só contribuem para naturalizar os preconceitos racistas.

Mas é importante lembrar que tais preconceitos diversas vezes aparecem escancaradamente, sem nenhuma restrição e sem medo de se apresentarem. Um exemplo ocorreu no Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas (FESTAC), no qual o Itamaraty, instituição da diplomacia brasileira, vetou a participação de Abdias Nascimento, que já havia sido convidado pela própria organização do evento. Além disso, em substituição ao pensador negro, a instituição deu voz a outras figuras cujas intervenções pretenderam defender ideias de que não existe racismo no Brasil e que todos os habitantes do país vivem em harmonia, demonstrando em síntese a ideia de democracia racial (NASCIMENTO, 2016NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016., p. 40).

Para entender e revelar como o racismo opera nas teorias da democracia racial, pois ele se dissimula de maneira que muitas pessoas não conseguem enxergá-lo, no cerne das teses de Freyre e outros, faremos um pequeno percurso teórico no pensamento de Frantz Fanon e buscaremos entender como essa forma de racismo atinge subjetivamente o ser negro.

Frantz Fanon e a negação ontológica do sujeito negro

Em 1952, Frantz Fanon publica a monografia, que fora rejeitada no curso de medicina na Universidade de Lyon (FAUSTINO, 2015FAUSTINO, Deivison Mendes. “Por que Fanon? Por que agora?”: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. Tese (Doutorado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2015., p. 33), intitulada Pele negra, máscaras brancas. Nesse livro, o pensador realiza um estudo de duas metafísicas: a do ser negro e a do ser branco (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 26).

Sua intenção é mostrar que o negro não é concebido como ser humano, como um sujeito ontológico, mas apenas como um objeto. Ou seja, o negro não é entendido como um ser capaz de agir e transformar o mundo ao seu redor a partir de suas ações, mas apenas um objeto que pode ser manipulado e modificado conforme a vontade do branco. Para avaliar essas considerações, devemos ter em conta a concepção filosófica do iluminismo, segundo a qual, a caracterização do ser humano em relação ao que o diferencia dos outros animais é a sua capacidade de modificar o curso da natureza, transformando esse mundo por meio da razão, enquanto os outros seres sempre seguem o curso ditado pela natureza. Abbagnano afirma ser Kant o grande representante dessa perspectiva teórica (2020, p. 599), a partir do seguinte trecho:

para poder atribuir ao homem o seu lugar no sistema da natureza viva e assim caracterizá-lo, só resta dizer que ele tem o caráter que ele mesmo faz, porquanto sabe aperfeiçoar-se segundo os fins por ele mesmo criados; por isso de animal capaz de raciocinar (animal rationabile), pode tornar-se sozinho animal que raciocina (animal rationale) (KANT, 1798 apudABBAGNANO, 2020ABBAGNANO, Nicolas. Dicionário de filosofia. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. 6 edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012., p. 599).

Ao realizar uma série de questionários a negros martinicanos, Fanon nota que o negro não possui a característica essencial que caracteriza o ser humano. Ao relacionarmos o pensamento do iluminismo e o expresso por Fanon, notamos que algo se presume no pensamento kantiano de forma implícita. Nesse sentido, o pressuposto fundamental da humanidade é o atributo da brancura.5 5 Sobre a relação entre o iluminismo e o racismo, ver Andrade (2017). Visto não possuir esse atributo essencial, nessa escala de humanidade, o negro está em estágio anterior (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 27).

Segundo Fanon (2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 28), essa inferioridade do negro é realizada a partir de um duplo processo, o primeiro econômico, fundado na experiência da colonização; o segundo, a partir de uma epidermização da inferioridade, ou seja, a subalternização da pele negra em relação à branca. Assim, Fanon mostra que a inferioridade do ser negro não é constituída somente a partir de uma questão de classe, mas também a partir de uma axiologia, na qual a pele negra possui um valor inferior em relação à pele branca.

Notamos, portanto, que a construção social do negro não deve ser avaliada apenas economicamente, mas também a partir da interiorização dos valores que são construídos em relação ao negro. Desse modo, Fanon realiza um estudo psicanalítico do ser negro na Martinica que pode ser utilizado para interpretar o negro em diversos casos diaspóricos. O que é essa interiorização de valores? São ideias construídas pelos brancos acerca dos negros, que se encontram tão difundidas nas sociedades colonizadas que os negros acabam por ressoar e repercutir entre a própria população negra, que assimila, em parte ou no todo, tais ideias ou valores.

Para realizar este estudo, Fanon se debruça sobre algumas formas nas quais essa inferiorização se apresenta ao negro colonizado: (i) pela linguagem que o negro intenta manejar a língua francesa com perfeição, de modo que seu interlocutor esqueça-se que ele é um martinicano, ou melhor, um negro (2008, p. 33-51); (ii) pela relação amorosa inter-racial, na qual a mulher negra concebe no homem branco a salvação de sua estirpe, a partir de um embranquecimento de seus filhos (2008, p. 53-68), como expresso no quadro A redenção de Cam6 6 Sobre o quadro A redenção de Cam, ver Lotierzo (2017). e (iii) a relação amorosa inter-racial, na qual o homem negro, é encarado como um objeto sexual (2008, p. 69-82). Neste caso podemos pensar na fetichização do homem negro como aquele que possui membros sexuais maiores e maior apetite sexual.

Ao realizar essa análise, Fanon demonstra que tais concepções do negro o inferiorizam de tal modo que esse sujeito tenta se distanciar de suas características negras, buscando o seu embranquecimento, ou seja, a utilização de uma máscara branca e, assim, a busca de ser o outro e nunca ele próprio:

cheguei ao mundo pretendendo descobrir um sentido nas coisas, minha alma cheia do desejo de estar na origem do mundo, e eis que me descubro objeto em meio a outros objetos […] Enquanto o negro estiver em casa não precisará, salvo por ocasião de pequenas lutas intestinas, confirmar um ser diante do outro. Claro, bem que existe o momento de “ser-para-o-outro”, de que fala Hegel, mas qualquer ontologia torna-se irrealizável em uma sociedade colonizada e civilizada (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 103).

Fanon retoma Hegel para apontar a impossibilidade de se conceber uma ontologia negra. Para Hegel, a constituição do ser possui uma relação dialética que constrói a sua identidade a partir de uma relação com o outro. Ora, para que essa relação se efetive depende de uma reciprocidade. Assim, o eu só se reconhece como sujeito a partir do reconhecimento que o outro tem desse eu.

Segundo Faustino (2015FAUSTINO, Deivison Mendes. “Por que Fanon? Por que agora?”: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. Tese (Doutorado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2015., p. 61), para Hegel, “a consciência de minha existência depende da interação e, sobretudo, do reconhecimento que os outros atribuem a mim, pois é na relação com o Outro - como exterioridade objetiva - que me faço e me percebo Eu”.

Notamos aqui que a ontologia hegeliana se apresenta a partir do reconhecimento do outro, ou seja, a partir do “ser-para-o-outro”. Desse modo, a partir de um conflito dialético entre as duas consciências é que o indivíduo se reconhece como verdadeiro. Contudo, segundo Faustino:

Fanon diagnostica um distúrbio no sistema hegeliano, argumentando que o colonialismo impede que, de um lado, a consciência “independente” se veja como parte da outra que a compõe e, do outro, que a “consciência dominada” alcance a “verdadeira independência” como “consciência-de-si livre”. O Outro não se lhe aparece (embora continue sendo) como elemento constituinte do Eu e, em consequência disso, a universalidade - de ambos, diga-se, conquistada no contato - aparece como próprio de apenas uma delas: ao dizer “o que é o humano”, o europeu, com as mãos cheias de sangue e a consciência tranquila, descreve a si mesmo, excluindo como menos ou não humano a qualquer outro que não lhe pareça com ele próprio (FAUSTINO, 2015FAUSTINO, Deivison Mendes. “Por que Fanon? Por que agora?”: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. Tese (Doutorado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2015., p. 64).

A questão colocada aqui é que numa relação entre eu e o outro para “ser-para-o-outro”, este deve me entender como parte de sua consciência. Contudo, segundo Fanon, a colonização impôs ao ser negro uma existência dada a partir do branco, o qual não o considera como um sujeito, e muito menos como parte de sua “consciência-de-si” e “para-si”, de modo que o negro existe a partir do branco, não possuindo uma independência ontológica.

Assim, a dialética necessária para a construção ontológica, tal como foi delineada por Hegel, se desvanece para o negro. O negro nunca é entendido como um ser pensante capaz de transformar e mudar o mundo, ele é apenas um objeto que é utilizado conforme os desígnios do branco. Portanto, essa construção da inferioridade do negro não é construída apenas para o negro, mas também para o branco. Mas como isso é realizado?

Fanon aponta que essa anormalidade se institui desde a infância da criança negra e pode ser notada a partir do conceito de katharsis coletiva, na qual o negro é sempre representado como o mal. Assim, a expurgação de todos os males existentes no branco é canalizada e personificada no negro, algo que pode ser visto a partir das representações estereotípicas dos negros em filmes e desenhos infantis.

as brancas, por uma verdadeira indução, sempre percebem o preto na porta impalpável do reino dos sabás, das bacanais, das sensações sexuais alucinantes… Mostramos que a realidade desmente todas essas crenças. Mas tudo isso se acha no plano do imaginário […] O branco que atribui ao negro uma influência maléfica regride no plano intelectual pois, como demonstramos, ele se inteirou desses conteúdos com a idade mental de oito anos (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 152).

Para fundamentar essa construção do ser negro, Fanon recorre ao conceito de inconsciente coletivo de Jung, o qual é concebido como o imaginário construído socialmente e repassado de geração em geração, formando “o conjunto de preconceitos, mitos, atitudes coletivas de um grupo determinado” (2008, p. 159). De acordo com a leitura que Fanon faz do conceito, podemos entender o inconsciente coletivo como o conjunto das ideias construídas sobre determinados seres sociais, compartilhadas socialmente, dadas como universais, mas que não são comprovadas, ou sequer aferidas no meio social; ao contrário, trata-se de noções preconcebidas, relacionando-se, desta forma, ao senso comum.

Essas ideias provenientes do inconsciente coletivo europeu se concretizarão na representação do negro como ser inferior, que podem ser notadas em diversos exemplos apontados por Fanon:

Na Europa, o Mal é representado pelo negro. É preciso avançar lentamente, nós o sabemos, mas é difícil. O carrasco é homem negro, Satã é negro, fala-se de trevas, quando se é sujo, se é negro - tanto faz que isso se refira à sujeira física ou sujeira moral. Ficaríamos surpresos se nos déssemos ao trabalho de reunir um grande número de expressões que fazem do negro o pecado. Na Europa, o preto, seja concreta, seja simbolicamente, representa o lado ruim da personalidade. Enquanto não compreendermos essa proposição, estaremos condenados a falar em vão do “problema do negro” (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 160).

A representação do negro no inconsciente coletivo europeu evidencia os procedimentos de inferiorização, a partir dos quais o seu ser será concebido. Essa ontologização negativa do negro é tão forte, segundo Fanon, que a própria população negra interiorizará tal concepção, desde a sua infância, ao ver durante toda a sua vida a representação do negro como o pleno mal. Como consequência disso, o negro não se compreenderá como ser humano ao ver em si tal projeção. Ele buscará, impetuosamente, uma identidade branca, em um profundo processo de negação de si, a ponto de gerar a reprodução de todas aquelas ideias preconcebidas a respeito do negro manifestas no inconsciente coletivo europeu, de modo que a sua própria identidade se rompe:

[…] é normal que o antilhano seja negrófobo. Pelo inconsciente coletivo o antilhano adotou como seus todos os arquétipos do europeu. A anima do negro antilhano é quase sempre uma branca. Do mesmo modo, o animus dos antilhanos é sempre um branco […] Ora, inconscientemente, desconfio do que em mim é negro, isto é, da totalidade do meu ser […] O negro antilhano é escravo desta imposição cultural. Após ter sido escravo do branco, ele se auto-escraviza. O preto é, na máxima acepção do termo, uma vítima da civilização branca. Não é portanto surpreendente que as criações artísticas dos poetas antilhanos não tragam uma marca específica: eles são brancos (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 162).

Destarte, Fanon (2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 163) compreende que todo o processo de conhecimento de si, de individuação do ser negro é dado pelo inconsciente coletivo europeu, o qual não leva em consideração, em momento algum, a cor de sua pele. Tal fato leva o negro a viver “uma ambiguidade extraordinariamente neurótica” (2008, p. 162): se, de um lado a cor da sua pele o caracteriza como negro, ao mesmo tempo o inconsciente coletivo o define como a concretização de todo o mal. Diante de tal constatação - e da ausência, nesta estrutura racista de pensamento, dos elementos que permitiriam refutá-la - o negro busca a brancura e reproduz, como se fossem seus, todos os preconceitos que as concepções colonialistas europeias estabelecem contra os demais negros.

A partir de Fanon, torna-se evidente que a construção do ser ontológico do negro se fundamenta em uma concepção do ser humano como ser branco. Desse modo, o negro é jogado em um limbo ontológico não sendo concebido como sujeito, mas apenas e sempre como objeto. Visto isso, a única forma de entender o negro como sujeito seria a partir de um processo de desalienação do negro, ou seja, torná-lo consciente dessa situação.

Após nos defrontarmos com o pensamento de Fanon, notamos diversas similaridades entre as formas de subjugação do negro martinicano e o brasileiro de modo que a ideia de democracia racial parece fincar algumas de suas raízes na inferiorização do negro que nega a sua existência.

Para o pensador, há a utilização de diversos mecanismos para interiorizar a inferioridade do negro, camuflados no cotidiano do negro em todo o percurso da sua vida, de tal modo que ele é entendido como a própria personificação do Mal. Como vimos, a consequência disso é a inferiorização do negro a tal ponto que ele não quer se reconhecer como negro, buscando de diversas formas se encaixar na brancura, ou melhor, ser branco. Assim, nega o seu próprio ser, tratando e sendo tratado como objeto.

Quando nos debruçamos sobre os textos de Nina Rodrigues e Ramos, notamos de maneira evidente a negação da humanidade ao negro, a partir de uma inferiorização fundamentada na questão evolutiva.

Ramos, influenciado por Nina Rodrigues, intenta demonstrar a inferioridade do negro a partir de uma diferenciação apontada pelos mitos de cada cultura.

Por sua vez, quando analisamos o pensamento de Freyre, que é reconhecido como o baluarte do mito da democracia racial, percebemos que, apesar de o autor tentar negar a existência da desigualdade racial, seus textos acabam evidenciando como ele inferioriza o negro.

Ao voltarmos à citação do trecho freyriano exposto anteriormente, notamos como o antropólogo descreve de forma negativa o negro:

Enquanto a África é vista como algo muito relacionado ao instinto, sendo definida pelo seu calor sexual, a Europa é entendida como o baluarte do caráter e da medida a partir da razão. Para Freyre, o instinto africano operará nas diversas camadas da sociedade: na Igreja, que definem moralmente a sociedade; no Direito, que estabelece leis para o convívio harmônico em sociedade; na Arquitetura, que possui como pressuposto a medida e o cálculo racional para a criação de belas obras; no Latim, a língua utilizada pela ciência. Assim, quando o instinto africano chega a essas instâncias, ele os corrói, como se fosse o responsável pela queda de toda uma estrutura racional.

É importante salientar que essa estrutura racional é exatamente aquilo que se entende como o bom, aquilo que deve ser preservado socialmente, mas o “acre requeime” instinto africano derruba essas estruturas.

Nesse sentido, nesses autores é reiterada a inferiorização do negro de diversas maneiras, em toda uma estrutura social, de tal modo que o negro pode ser concebido como o portador de todo o Mal que esvaece uma sociedade.

Portanto, mesmo que Freyre tente camuflar a ideia de inferioridade da raça negra, ela é expressa em seu texto, denotando o funcionamento do mito da democracia racial, um racismo que está extremamente presente no cotidiano da sociedade brasileira, mas que não assume a sua existência.

Dessa forma, podemos inferir que a concepção fanoniana de subjugação do negro, de modo a retirar a sua existência ontológica, parece ser um dos elementos da exclusão do negro no Brasil, a partir da noção de mito da democracia racial.

A partir desses pressupostos, nos parece que o mito da democracia racial se constitui como um imaginário coletivo, que foi e continua sendo reproduzido por grandes intérpretes do Brasil, de modo que a compreensão do negro como objeto e a inferiorização proveniente desta concepção se institui como um de seus fundamentos.

Contudo, com vistas a entender melhor como funcionam os mecanismos de objetificação do negro, um importante elemento acerca do mito da democracia racial não parece poder ser explicado por Fanon, a saber, a negação constante da existência do racismo no Brasil. Essa questão se faz importante, pois ela será uma das responsáveis pelo silenciamento dos negros e da própria existência do problema do racismo. Mas as raízes desse problema podem estar enraizadas nas relações de poder, pois ele nos parece responsável pela reprodução de tal concepção, como vimos no episódio vivido por Abdias Nascimento na FESTAC.

Assim, para elucidar esse problema buscaremos entender como o poder se organiza para que essa negação ontológica seja cada vez mais reproduzida. Para isso nos debruçaremos sobre o conceito de dispositivo de racialidade/biopoder de Sueli Carneiro.

Sueli Carneiro e o dispositivo de racialidade/biopoder

Em 2005, Sueli Carneiro defende a sua tese de doutorado intitulada A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Nela aplica os conceitos foucaultianos de dispositivo e biopoder com o intento de entender as relações raciais no Brasil. Como fim desta empreita a filósofa engendrou o conceito de dispositivo de racialidade/biopoder, demonstrando como as relações de poder no Brasil negam ontologicamente o negro para a afirmação da branquitude.

Notamos, logo no início da tese de Carneiro, que ela se coaduna com a concepção de Fanon acerca da negação do sujeito negro nas relações raciais. Isso é evidente no diálogo que ela constrói na introdução de sua tese com o Eu Hegemônico. Ela inicia o diálogo se intitulando como o Outro, que fala do lugar da escrava, ao qual é negado o título de cidadão e que sempre fora condicionado à história produzida pelo Eu Hegemônico, o branco (CARNEIRO, 2005CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 20).

Neste diálogo Carneiro solicita uma conversa com o Eu Hegemônico para mostrar a existência da racialidade e as consequências que ela possui. Para isso, ela aciona como intermediador da conversa, o filósofo francês Michel Foucault, que, por ser branco e aceito academicamente, não seria penoso para o Eu Hegemônico.

Para convencer-te a aceitar esse encontro busquei conceitos (que tu tanto aprecias) para te demonstrar o deslocamento do humano que praticastes em relação a mim, expulsando-me para longe, muito longe, na morada de uma alteridade situada nos confins do não-ser, para além dos Outros que foram admitidos, ainda que com reservas, na sua privacidade. Não falo por despeito ou inveja. Posso viver perfeitamente bem sem ti. Incomoda-me apenas o desconforto das condições de vida que me destinastes que, aliás, só conheci depois de te encontrar (CARNEIRO, 2005CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 21).

Notamos, assim, que Carneiro concorda com Fanon acerca da negação ontológica do sujeito negro, entretanto, ela não abordará como isso se realiza no sujeito como Fanon fez, mas como as relações de poder produzem esse Não-Ser. Deste modo, abordaremos aqui como ela constrói a noção de dispositivo de racialidade a partir da teoria foucaultiana de poder.

Um dos pontos fundamentais em utilizar o filósofo francês para se compreender o funcionamento do racismo no Brasil é que a concepção de poder não será mais entendida como uma relação dual entre dominante e dominado, caracterizada a partir da imposição de um ser sobre outro. Segundo Foucault,

[…] não há, no princípio das relações de poder, e como matriz geral uma oposição binária e global entre dominadores e os dominados, dualidade que repercuta de alto a baixo e sobre grupos cada vez mais restritos até as profundezas do grupo social (1999aFOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999a., p. 90).

Essa compreensão de poder será uma ferramenta extremamente útil para entender o racismo no Brasil, na medida em que o poder se apresenta em diversas camadas e setores da sociedade, não sendo evidenciado apenas em uma, como, por exemplo, na relação Estado/indivíduo. Assim, o corpo negro, entendido a partir desse pressuposto, é atravessado por diversos modos de manifestação do racismo, nos mais diferentes ambientes e formas sociais.

Destarte, o poder não deve ser entendido como uma instituição que impõe leis que, necessariamente, serão seguidas por todos os membros dessa sociedade, pois isso pressupõe uma coação que não considera a ação dos indivíduos e que, de tal modo, nesse tipo de relação, se extingue a liberdade na medida em que numa submissão completa do indivíduo não há possibilidade de ação; e se não há liberdade, logo, não há poder. Assim, “não há relação de poder onde as determinações estão saturadas - a escravidão não é uma relação de poder, pois o homem está acorrentado (trata-se apenas de uma relação física de coação) - mas apenas quando ele pode deslocar e, no limite, escapar” (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, Michel. Sujeito e poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 229-250., p. 244).

Desse modo, Carneiro, seguindo Foucault, compreenderá o poder como uma relação de forças que permeia e atravessa as múltiplas formas de convívio social. Assim, o poder deverá ser entendido como a própria relação, ou seja, a ação sobre outra ação. Portanto, não existe poder numa relação unívoca, na qual um subjuga o outro, mas como algo que está presente nas mais diversas relações.

uma relação de poder […] se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma relação de poder: que “o outro” (aquele sobre o qual ela exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito da ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, Michel. Sujeito e poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 229-250., p. 243).

Destarte, se o poder está presente em todas as relações e ele é ação sobre outra ação, uma consequência necessária na ação de um sujeito é a resistência, ou seja, essa concepção de poder possui o pressuposto que as relações são permeadas por, pelo menos, dois agentes que constroem, trocam e impõem poder.

Portanto, para que se exerça uma relação de poder, é preciso que haja sempre, dos dois lados, pelo menos uma certa forma de liberdade […] Isso significa dizer que, nas relações de poder, há necessariamente possibilidade de resistência, pois se não houvesse possibilidade de resistência - de resistência violenta, de fuga, de subterfúgios, de estratégias que invertam a situação -, não haveria de forma alguma relações de poder (FOUCAULT, 2004FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2004., p. 276-277).

A partir disso, o filósofo aponta outra consequência nas relações de poder: se numa relação há um confronto de ações que intentam se sobrepor uma a outra, para a sua efetiva vitória é necessário que os agentes possuam uma estratégia de poder. Essas estratégias são

os mecanismos utilizados nas relações de poder. Porém, o ponto mais importante é evidentemente a relação entre relações de poder e estratégias de confronto […] Em suma, toda estratégia de confronto sonha em tornar-se relação de poder; e toda relação de poder inclina-se, tanto ao seguir sua própria linha de desenvolvimento quanto ao se deparar com resistências frontais, a tornar-se estratégia vencedora (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, Michel. Sujeito e poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 229-250., p. 248).

No primeiro volume da História da Sexualidade, Foucault afirma que no dispositivo da sexualidade não há uma estratégia única e universal que se relaciona a todas as manifestações do sexo, mas que são diversas estratégias que se associam (FOUCAULT, 1999aFOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999b., p. 98-99). Desse modo, seguindo a interpretação de Rabinow e Dreyfus (1995RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1995., p. 134), podemos entender o dispositivo como “estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles” (FOUCAULT, 2019FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999b., p. 367), que fundamentarão

um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos (FOUCAULT, 2019FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019., p. 364).

Assim, ao observar a aplicação da noção de dispositivo em Foucault no campo da sexualidade e da loucura, Carneiro (2005CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 39) nota que essa relação de poder cria sujeitos-forma: um que se afirmará como verdade e outro que será negado e, consequentemente, excluído. Podemos entender isso melhor a partir de uma citação de Foucault:

se é verdade, por exemplo, que a constituição do sujeito louco pode ser efetivamente considerada como consequência de um sistema de coerção - é o sujeito passivo - o senhor sabe muito bem que o sujeito louco não é um sujeito não livre e que, precisamente, o doente mental se constitui como sujeito louco em relação e diante daquele que o declara louco (2004FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2004., p. 275).

Desse modo, Carneiro pode afirmar que dispositivo possui consequências ontológicas ao produzir sujeitos-forma, que se opõem à afirmação da existência de um ser a partir da negação do outro.

Na loucura, por exemplo, há a demarcação entre o normal e o patológico, na qual o sujeito-forma será entendido a partir do doente mental, que será negado para a afirmação de outro diametralmente oposto, o normal. Foucault nota que o sujeito normal não pode existir por si, a definição de normalidade só vem a ser a partir do momento em que existe uma outra demarcação oposta que comporta aquilo que ele não é: o doente mental. Segundo Carneiro,

essa é, portanto um tipo de prática divisora que um dispositivo institui no campo ontológico: a constituição de uma nova unidade, composta de um núcleo interno em que se aloja a nova identidade padronizada e, fora dele, uma exterioridade que lhe é oposta mas essencial para a sua afirmação. Tem-se então, o doente mental viabilizando o homem normal. Assim, para Foucault, se o homem normal tiver que vir a público para dizer o que ele é, ele só vai se afirmar pela negatividade “não sou doente mental”. Ele se define negativamente para demarcar a sua diferença em relação ao sujeito-forma, aquele construído negativamente para afirmar a dinâmica positiva do Ser. Ou seja, o Outro fundado pelo dispositivo adquire apresenta-se de forma estática, que se opõe à variação que é assegurada ao Ser. Assim, a dinâmica instituída pelo dispositivo de poder é definida pelo dinamismo do Ser em contraposição ao imobilismo do Outro (2005, p. 39-40).

Carneiro nota, portanto, que a noção de dispositivo de Foucault oferece atributos ontológicos do Eu e do Outro, na qual a existência do razoável, do normal, do vital só existe por que antes se produziu o louco, o anormal, o outro como morte. Assim, a autora propõe a noção de dispositivo de racialidade, a qual ela considerará mais ampla que a da sexualidade, uma vez que seu estatuto é a cor da pele (2005, p. 42).

Deste modo, esse dispositivo formulará o sujeito-forma ideal, compreendido no ser branco e negará o sujeito-forma que o opõe: o branco como ser e o negro como não-ser, dando forma a um tecido social que pressupõe essa relação antagonista.

Uma das formas de a filósofa demonstrar esse dispositivo de racialidade será a apresentação da brancura como modelo paradigmático da humanidade, como apontado por Nogueira:

a ‘brancura’ passa a ser parâmetro de pureza artística, nobreza estética, majestade moral, sabedoria científica, etc. Assim, o branco encarna todas as virtudes, a manifestação da razão, do espírito e das idéias: ‘eles são a cultura, a civilização, em uma palavra, a humanidade’ (NOGUEIRA, 1998 apudCARNEIRO, 2005CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 43).

Como consequência, ao se fundar como ser, esse grupo evidencia também que deve ser protegido, de modo que, no caso do dispositivo de racialidade, gerará concepções do senso comum que privilegia a vida branca em relação à negra (CARNEIRO, 2005CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 43).

Uma das questões que defrontamos quando associamos as noções de dispositivo às de sexualidade e de racialidade, remete ao momento em que Foucault entende a maior difusão dos dispositivos e consequentemente a sua dominância na sociedade. O filósofo francês afirma que isso se inicia no século XVII e se desenvolve no século XIX (FOUCAULT, 2004FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2004., p. 32; 1999aFOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999a., p. 115). Entretanto, visto que a filósofa, quando engendra o conceito de dispositivo de racialidade, está pensando na maneira como o racismo opera no Brasil, parece que a utilização do mesmo ponto de inflexão sugere que no início da colonização o racismo de cor não era algo tão predominante no Brasil.

Para solucionar essa questão, Carneiro recorrerá ao pensamento de Charles Mills, disposto no livro The racial contract, para fundamentar a origem do dispositivo de racialidade no início da colonização, no século XV, sendo, portanto, anterior aos dispositivos propostos por Foucault.

Segundo Carneiro (2005CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 47), entendendo o pensamento de Mills a partir da noção de dispositivo, desde o “descobrimento” da América o mundo foi estruturado pela colonização europeia, e, consequentemente, pela supremacia branca, emergindo, assim uma nova tríade de poder, saber e subjetividade que constitui novos sujeitos: homens, nativos, brancos e não-brancos.

Um dos fundamentos principais da concepção de contrato racial de Charles Mills é que há um pressuposto fundamental nas teorias de contrato social apresentadas pelos contratualistas, como Hobbes, Rousseau e Locke. Esse fundamento não é expresso em nenhum momento em suas teorias, contudo, se mostra evidente quando se observa as relações de poder entre os europeus brancos e outros povos.

O contrato social abriga, para Mills, outros contratos um dos quais, o Contrato Racial. A especificidade do Contrato Racial consistiria no fato de, embora fundado na tradição contratualista, ser um contrato restrito aos racialmente homogêneos, em que a violência racial, em relação aos racialmente diferentes, é, no interior da teoria do contrato social, um elemento de sustentação do próprio Contrato Racial, e um deslocamento da relação contratualista com os diferentes para o estado de natureza. Ou seja, o Contrato Racial é um contrato firmado entre iguais, no qual os instituídos como desiguais se inserem como objetos de subjugação, daí ser a violência o seu elemento de sustentação (CARNEIRO, 2005CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 48).

Mills (1999MILLS, Charles. The racial contract. New York: Cornell University Press, 1999., p. 16-17) afirma que apesar das teorias contratualistas terem como grande estandarte a igualdade e liberdade como alicerces da sociedade civil, esses lemas só são seguidos no interior das sociedades europeias. A colonização mostra que esses marcos fundamentais dos contratualistas não são estendidos aos povos não europeus, ou seja, aos povos não brancos.

Tal fato denota uma supremacia branca que age silenciosamente “nos bastidores” dos sistemas políticos, estruturando um contrato racial, que apesar de não dito, determina relações de poder. Notamos que um dos pontos cruciais para fundamentar o surgimento do dispositivo de racialidade no contrato racial é aquilo que diferencia os conceitos de dispositivo e épistémé de Foucault, a saber, a compreensão das relações de poder a partir daquilo que não é expresso.

Em As palavras e as coisas, querendo fazer uma história da épistémé, permanecia em um impasse. Agora gostaria de mostrar que o que chamo de dispositivo é algo mais geral que compreende a épistémé. Ou melhor, que a épistémé é um dispositivo especificamente discursivo, diferentemente do dispositivo, que é discursivo e não discursivo, seus elementos sendo muito mais heterogêneos (FOUCAULT, 2019FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019., p. 367).

Ao estabelecer um dispositivo de poder a partir do contrato racial, que se instaura no século XV, Carneiro dá um novo estatuto ontológico ao negro, ele passa a ser entendido como um ser agente e livre, de tal modo que ela atende a um dos principais elementos da concepção de poder foucaultiana, a saber: a resistência.

Gostaria de sugerir uma outra forma de prosseguir em direção a uma nova economia das relações de poder, que é mais empírica, mais diretamente relacionada à nossa situação presente, e que implica relações mais estreitas entre a teoria e a prática. Ela consiste em usar as formas de resistência contra as diferentes formas de poder como um ponto de partida. Para usar uma outra metáfora, ela consiste em usar esta resistência como um catalisador químico de modo a esclarecer as relações de poder, localizar sua posição, descobrir seu ponto de aplicação e os métodos utilizados. Mais do que analisar o poder do ponto de vista de sua racionalidade interna, ela consiste em analisar as relações de poder através do antagonismo das estratégias (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, Michel. Sujeito e poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 229-250., p. 234).

Ao utilizar a noção de poder, a partir da noção de resistência, e relacionar com a colonização para entender o racismo no Brasil, Carneiro se defronta com Foucault, pois, como vimos acima, o filósofo afirma não haver poder em uma relação de escravidão, visto que nessa relação de repressão o escravo está submetido ao seu senhor.

Entretanto, ao compreender que o dispositivo de racialidade surge com o colonialismo, Carneiro institui o escravo como um agente que resiste e não apenas como um ser passivo em relação às ordens de seu senhor. Essa agência do escravizado concorda com a concepção de Beatriz Nascimento, a qual mostra os quilombos como locais de resistência negra:

é inegável o caráter de reação dos negros “quilombolas” ao regime escravista, sistema que domina toda a atividade produtiva da sociedade brasileira naquele momento. Neste sentido, a liberdade é uma das motivações para que os escravos procurem os “quilombos” […]. Daí a generalidade do termo “quilombo” para indicar variadas manifestações de resistência (2021, p. 114).

A concepção foucaultiana do escravo como um ser submetido ao outro, além de lhe tirar a sua agência como sujeito, tem como consequência excluí-lo das relações de poder, ou seja, da vida política.

Já que para os gregos, liberdade significa não-escravidão - o que é, de qualquer forma, uma definição de liberdade bastante diferente da nossa - considero que o problema já é inteiramente político. Ele é político uma vez que a não-escravidão em relação aos outros é uma condição: um escravo não tem ética. A liberdade é, portanto, por si mesma política (FOUCAULT, 2004FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2004., p. 270).

Assim, Carneiro, ao realizar essa nova leitura da colonização e da escravização, confronta o modo como Foucault compreendia o escravo, trazendo elementos que colocam o negro em uma relação de poder, na vida política e na disputa sobre a verdade histórica, de tal modo que terá elementos para engendrar o conceito de dispositivo de racialidade.

Entretanto, somente a noção de dispositivo não é suficiente para explicar as diferentes formas como o racismo se apresenta no Brasil. Percebendo isso, Carneiro, seguindo as linhas gerais do pensamento de Foucault, apresenta uma nova dimensão a ser adicionada ao dispositivo de racialidade. Nesse sentido, além de seus mecanismos de poder que subalternizam e inferiorizam o outro, uma nova tecnologia de poder se sobrepõe à raça. Essa tecnologia é o biopoder que se manifestará articulando gênero e raça, “definindo perfis específicos para ‘o deixar viver e deixar morrer’” (CARNEIRO, 2005CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 72). Se de um lado essa tecnologia controlará a população negra incidindo diretamente no corpo da mulher a partir da reprodução; de outro, ela recairá como violência sobre o corpo do homem negro. Para entender melhor como isso se realiza, nos debruçaremos novamente sobre o pensamento de Foucault para entender como funciona essa nova dimensão: a biopolítica.

Foucault afirma que, na soberania, a vida e a morte não são entendidas como elementos naturais, mas como elementos políticos, subjugados à decisão do soberano. Destarte, a soberania será caracterizada pelo direito “de fazer a morte ou deixar viver” (FOUCAULT, 1999bFOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999b., p. 287), o que, consequentemente, denota que essa apropriação política da vida não possui um equilíbrio entre vida e morte, mas uma ênfase na morte, na ação do soberano de causar a morte. Assim, “o direito pela vida só se exerce a partir do momento em que o soberano pode matar” (FOUCAULT, 1999bFOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999b., p. 286), ao passo que a vida não necessita de uma ação do soberano.

Contudo, Foucault nota, a partir do século XIX, uma nova concepção política da vida: a biopolítica expressa no “poder de ‘fazer’ viver e de ‘deixar’ viver’”, na qual a ênfase se dá agora à vida, ou seja, uma ação do poder para a manutenção da vida. Entretanto, essa inversão não caracteriza uma oposição ao direito anterior sobre a vida, mas uma complementação (FOUCAULT, 1999bFOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999b., p. 287).

Essa mudança se realizará a partir de dois mecanismos de poder: a disciplinar e a biopolítica. No início do século XVII, com a industrialização, se faz necessária a utilização de novas técnicas de poder, a fim de, por exemplo, haver uma maior produtividade. Assim, a disciplina será utilizada como forma de poder para educar, vigiar e treinar.

Eram igualmente técnicas de racionalização e de economia estrita de um poder que devia se exercer, da maneira menos onerosa possível, mediante todo um sistema de vigilância, de hierarquias, de inspeções, de escriturações, de relatórios: toda essa tecnologia, que podemos chamar de tecnologia disciplinar do trabalho (FOUCAULT, 1999bFOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999b., p. 288).

Por sua vez, a biopolítica surge no século XVIII como uma nova tecnologia de poder que não se aplicará diretamente ao indivíduo, mas no conjunto da sociedade. Exatamente pelo surgimento das cidades e crescimento da população essa forma de poder será utilizada para a população em geral. Ela

se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem a corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios à vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc (FOUCAULT, 1999bFOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999b., p. 289).

O desenvolvimento da medicina nos traz exemplos mais evidentes de como funciona o biopoder. Se, antes as mortes por doenças e epidemias eram interpretadas como fatalidades, que aconteciam de modo abrupto, às quais a população estava sujeita, agora, com o desenvolvimento do saber médico, essas doenças podem ser administradas. A doença passa a ser concebida como algo que vai se apoderando lentamente dos corpos e se desenvolvendo, de modo que pode ser combatida, desde que a população realize alguns procedimentos de prevenção, como, por exemplo, a higiene.

O que queremos destacar é que essa administração é aplicada a toda uma população, e se antes, na soberania, havia uma ênfase maior na morte, na biopolítica a vida virou o grande estandarte, devendo ser estimulada com o aumento da natalidade e longevidade, assim como a diminuição das taxas de morbidade, entre outros fatores.

Notamos que o objeto da biopolítica não se aplica ao corpo individualmente como na disciplina, mas é uma tecnologia que visa a grande massa populacional, como políticas de Estado. Um ponto a ser destacado aqui é como o saber influenciará a forma de vida de toda uma população e como ele será utilizado. A questão que subjaz a isso é: se a biopolítica possui como ênfase a manutenção e o prolongamento da vida, como essa forma de poder lidará com a morte, ou melhor, como ela fará morrer?

Para responder a essa questão, Foucault afirma que o biopoder insere um novo elemento de poder, que garantirá o poder de matar e o funcionamento do Estado, a saber: o racismo. Ele será compreendido a partir do campo biológico, no qual a humanidade é fragmentada em raças, e a partir dessa fragmentação será definido quem deve viver e quem deve morrer (FOUCAULT, 1999bFOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999b., p. 304).

Como consequência da fragmentação da humanidade em raças, se utilizará uma hierarquização racial, de modo que a mistura entre raças ocasionaria uma deturpação da raça superior, que seria transmitida a outras gerações. Visto esse risco, é necessário que se elimine a raça entendida como inferior, como elemento necessário para a saúde da vida. Assim, notamos como o biopoder se alicerça biologicamente para fazer morrer:

a morte do outro não é simplesmente a minha vida na medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal, é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999b.b, p. 305).

Desse modo, o racismo será cada vez mais utilizado para dizimar populações. A partir do viés racial, serão excluídos aqueles que podem causar a degenerescência da sociedade. Notamos aqui a continuação do modelo do dispositivo de racialidade, mas utilizando novas tecnologias para a desconstrução do outro como ser, a negação ontológica do sujeito negro, sustentando assim o conceito formulado por Carneiro de dispositivo de racialidade/biopoder. Para exemplificar como isso acontece a pensadora recorre a Foucault para mostrar o imbricamento entre a disciplina e o biopoder para a negação do corpo negro. Enquanto, a primeira se mostra como elementar para a manutenção das formas de produção, mantendo uma segregação e a hierarquia social, o segundo se mostra nos resultados dessa produção, que não são divididos igualitariamente entre todos que participaram do processo, de modo que quando o corpo negro se torna dispensável, a raça é o artifício de poder utilizado para eliminá-lo.

Em nossa elaboração, entendemos que onde não há para o dispositivo de racialidade interesse de disciplinar, subordinar ou eleger o segmento subordinado da relação de poder construída pela racialidade, passa a atuar o biopoder como estratégia de eliminação do Outro indesejável. O biopoder aciona o dispositivo de racialidade para determinar quem deve morrer e quem deve viver (CARNEIRO, 2005CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 76).

Exemplificando esse processo, a filósofa tratará das formas contemporâneas de eliminação do corpo negro, que se encontra, por vezes, maquiados nas entranhas das relações de poder. No que diz respeito ao corpo negro feminino, a biopolítica se apresenta como o saber medicinal que diferencia o tratamento da mulher negra em relação à branca, tendo como objetivo estratégico eliminar a mulher negra e seus descendentes.

Segundo Carneiro, há um explícito controle de natalidade da população negra, que pode ser evidenciado nos tratamentos utilizados nas mulheres negras quando possuem miomas. O saber médico possui três tipos de tratamento para tal enfermidade: a retirada do útero, a obstrução de vasos sanguíneos que irrigam o mioma e a retirada do mioma. Entretanto, quando se compara em relação a cor da pele, enquanto as mulheres brancas possuem uma maior liberdade em escolher o tratamento, as mulheres negras em sua maioria recebem o mesmo tratamento, mesmo sem consentimento: de ligadura de trompas ou retirada de úteros. Tal fato demonstra o maior número de esterilizações de mulheres negras em relação às brancas (CARNEIRO, 2005CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 87-88).

Por sua vez, em relação aos homens negros, essa desproporcionalidade em relação aos homens brancos é marcada pela violência policial, na qual há uma taxa maior de assassinatos de homens negros pela polícia do que de homens brancos (CARNEIRO, 2005CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 90-91).

Considerações finais

Ao analisar o pensamento de Carneiro notamos que sua concepção de dispositivo de racialidade/biopoder nos traz um importante aparato conceitual que contribui com avanços importantes em relação ao pensamento de Fanon no que se refere à compreensão das formas de negação ontológica do sujeito negro. O pensador nos apresenta como essa negação é construída subjetivamente e quais as suas consequências para o sujeito negro, contudo há uma questão que Fanon não nos responde quando utilizamos seu pensamento para compreender as relações raciais no Brasil, a saber, a negação da existência do racismo, uma característica essencial do mito da democracia racial. Para responder a essa questão, o pensamento de Carneiro se mostra importante ao forjar o conceito de dispositivo de racialidade/biopoder, possibilitando uma nova perspectiva de compreensão do problema.

Parece-nos que o silêncio enrustido no mito da democracia racial nada mais é que uma das principais maneiras de como se apresenta o dispositivo de racialidade/biopoder, evidenciando suas estratégias para a manutenção do poder.

Ao analisar o pensamento de Foucault sobre o poder, notamos que em um determinado momento histórico a soberania era o dispositivo preponderante nas relações de poder, regida pelo lema “fazer a morte ou deixar viver”. Era o soberano quem definia quem viveria a partir da escolha de quem deveria morrer. Por sua vez, posteriormente, essa relação de poder, devido ao contexto social e histórico, foi perdendo a sua supremacia, sendo instituído um novo tipo de relação de poder: a biopolítica, fundamentada na proposição “fazer viver e deixar viver”, que, apesar de parecer ter uma ênfase na vida, como vimos, encobre a ação de fazer morrer.

Ao utilizar o pensamento de Carneiro para compreender o mito da democracia racial, notamos que o conceito de dispositivo de racialidade/biopoder evidencia algumas formas de como o racismo se comporta no Brasil: se, inicialmente, nos textos de Nina Rodrigues e Ramos há afirmação peremptória da inferiorização dos negros, posteriormente, no pensamento de Freyre notamos uma tentativa de igualar a relação entre negros e brancos na sociedade brasileira, construindo uma “cortina” sobre o racismo, o que, consequentemente, acarreta um senso comum da inexistência do racismo no Brasil.

Notamos aqui uma mudança das estratégias e das relações de poder, da soberania para a biopolítica (ou a junção desses dois dispositivos), momento em que o silêncio e a negação do racismo serão elementos fundamentais para a propagação do racismo. Do mesmo modo que a biopolítica retira a palavra morte do lema da soberania, mas não deixa de matar ou o contrato social que pressupõe um silencioso contrato racial, no dispositivo de racialidade/biopoder, aplicado ao mito da democracia racial, há a negação da existência do racismo, mas o número desproporcional de mortes de negros na sociedade em relação aos brancos se mantém.

A filósofa nos mostra, então, que o mito da democracia racial é só mais uma das estratégias das relações de poder que o dispositivo de racialidade/biopoder possui, de modo que ele ainda se apresenta de diversas outras maneiras na multiplicidade de relações de poder existentes na sociedade.

Agradecimento:

Este trabalho não teria sido possível sem o apoio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), que possibilitou o meu afastamento para a realização de pesquisa de doutorado na Universidade de Brasília (UnB). Agradeço aos professores wanderson flor do nascimento e Anderson Ribeiro Oliva, os quais possibilitaram um maior aprofundamento nos temas desse artigo. Também sou grato aos amigos Bryan Félix da Silva de Moraes, Raul Sousa de Oliveira, Mariana Santos de Assis e Richard de Oliveira Martins, pelas leituras atentas; à Tatiana Santos da Paz, Cristiane Sousa da Silva e Valéria Correia Lourenço, pelo quilombo; à Lara Denise Oliveira Silva, pelo amor afe(i)to; ao Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI) do IFCE, pelas discussões e debates enriquecedores; e, especialmente, a quem dedico esse artigo, à Professora Lenir Vieira Barbosa Fernandes (in memoriam), que me deu as primeiras letras.

Referências

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  • SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco. Tradução de Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Cia das Letras, 2012.
  • 1
    O percentual de brancos que ocupam cargos gerenciais é de 68,6%, enquanto de negros 29,9%. Acerca da taxa de analfabetismo, a exclusão se mantém: o percentual de negros é quase três vezes maior que o de brancos (IBGE, 2019IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2019., p. 1).
  • 2
    A taxa de homicídios de mulheres não negras no período de 2009 a 2019 caiu 26,9%, enquanto a de mulheres negras subiu 2%, sendo que só no ano de 2019, do total de mulheres assassinadas no Brasil, 66% eram negras (CERQUEIRA et al., 2021CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da violência 2021. Brasília: IPEA, 2021., p. 38-40).
  • 3
    Mais adiante retomaremos a análise dessa citação.
  • 4
    Sobre a noção de democracia racial, ver FERNANDES, 2008FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2008..
  • 5
    Sobre a relação entre o iluminismo e o racismo, ver Andrade (2017ANDRADE, Érico. A opacidade do iluminismo: o racismo na filosofia moderna. Kriterion. Belo Horizonte, v. 58, n. 137, p. 291-309, 2017. Disponível em: https://bit.ly/3IIWKmL. Acesso em 03 mar. 2022.
    https://bit.ly/3IIWKmL...
    ).
  • 6
    Sobre o quadro A redenção de Cam, ver Lotierzo (2017LOTIERZO, Tatiana. Racismo e estética na pintura brasileira. São Paulo: EDUSP, 2017.).

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

  • Disponibilidade de dados de pesquisa e outros materiais

    “Não se aplica”.
  • Financiamento:

    Não se aplica
  • Aprovação no comitê de ética:

    Não se aplica
  • Modalidade de avaliação

    Duplo-cega por pares.
  • Contexto de pesquisa

    O artigo deriva do texto “Análise do mito da democracia racial a partir de Frantz Fanon e Sueli Carneiro” apresentado como trabalho de final da disciplina “Entre Políticas de Morte e Éticas da Vida: Abordagens a partir de Sueli Carneiro e Achille Mbembe”, ministrada pelo Prof. Dr. wanderson flor do nascimento no Programa de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília, no ano de 2021 e do texto “A democracia racial como negação ontológica do sujeito a partir de Frantz Fanon” apresentado como trabalho de final da disciplina “História Cultural, Memórias e Identidade 3”, ministrada pelo Prof. Dr. Anderson Ribeiro Oliva” no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, no ano de 2021.

Editado por

Editores responsáveis

Flávia Varella - Editora-chefe Breno Mendes - Editor executivo

Disponibilidade de dados

“Não se aplica”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2022
  • Revisado
    09 Set 2022
  • Aceito
    27 Set 2022
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